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em falta

que absurdo… faz um mês que não publicamos nada no blogue. E é curioso, pois quase todos os dias falamos sobre algo curioso da vida aqui e dizemos: precisamos escrever  sobre isso no blogue. Mas, acho que ficamos esperando pelo texto ideal, feito com calma e muita reflexão, quando, talvez, devêssemos simplesmente escrever coisas curtas, impressões. Pois a sensação de viver neste lugar é muito esta. Todo dia acontece alguma coisa inusitada, esquisita, diferente. Todo dia você passa um pouco de raiva, pois as coisas não são fáceis, mas ao mesmo tempo sempre algo lhe surpreende, no bom sentido.

Às vezes você sai pela rua e vê um cara andando de bicicleta com um macaco na garupa. Às vezes você encontra elefantes. De outra feita, visita uma academia de ginástica super-ultra moderna e vê uma mulher correndo na esteira de sari e sandálias. Um dia você pergunta para a professora de hindi como fazer para se livrar das pombas que emporcalham toda a varanda, e ela dá um risadinha e diz: “você pode fazer como os indianos, o segredo é dar comida para as pombas”. Ao que respondo: “mas se eu der comida elas nunca irão embora!”, e ela, “bem, verdade, elas vão ficar na sua varanda para comer, mas vão cagar na varanda do vizinho, pois nunca sujam o lugar onde recebem comida”. Resignada, penso que todos os vizinhos devem alimentar as pombas do prédio, e elas se reúnem para cagar aqui em casa, com vontade!

E as vacas… caramba, agora que a temperatura média é de 40 graus na sombra (que sombra?), elas parecem ter se multiplicado. As ruas de Gurgaon estão tomadas. Mas o louco disso tudo é que nos acostumamos a elas, uma hora passam a fazer parte da paisagem. Assim como a sujeirama sem fim começa a ficar mais natural, seus olhos não saltam ao ver as montanhas de lixo. Você pensa, “quanta porcaria”, mas ao mesmo tempo se conforma com isso e fica contente em manter em casa um santuário de limpeza e higiene.

Porém não é possível se acostumar a certas coisas. A miséria nas ruas, as crianças pedindo, os mendigos esquálidos, mutilados, batendo nos vidros do carro e pedindo comida insistentemente. O jeito como são tratadas as mulheres, que fazem todo o serviço pesado. E o olhar sacana dos homens para nós, mulheres não-indianas, simplesmente por não sermos indianas – com tudo que isso acarreta no imaginário sexualmente reprimido desses caras. Acho que nunca vou me acostumar a esses olhares, esses que nos amedrontam ao pensar em sair de casa, que nos privam da liberdade aqui. Esse é a parte difícil da Índia, com a qual tenho que lidar e lutar sempre.

imagem de Shiva (se não me engano) em Old Delhi

imagem de Shiva (se não me engano) em Old Delhi

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ainda sobre Jaipur

Continuando a mensagem anterior, caros leitores, volto a Jaipur.

 

riquixás de bicicleta nas ruas da cidade

riquixás de bicicleta nas ruas da cidade

 

No trem que percorre o trecho Delhi-Jaipur, os olhos não conseguem abandonar a paisagem que aparece na janela. Há duas marcas presentes todo o tempo na estrada: pessoas e lixo, muito lixo. A sujeira beira o tempo todo os campos floridos, tomados do amarelo da canola. E vemos que as pessoas vivem mesmo nessa lama toda, misturadas a esses restos. Vacas e búfalos magros pastam em meio a montes imundos, nos quais também brincam algumas crianças, muito novas. Logo surgem os primeiros camelos, puxando carroças no campo. Estamos no Rajastão.

Em meio aos trilhos, nas estações em que paramos pelo caminho, vemos famílias inteiras de cócoras, provavelmente vivendo nesse lugar. A miséria não tem pudor em se mostrar. É nos trilhos também que várias pessoas se agacham para fazer coco, sem qualquer cerimônia. Em Delhi, toda hora vemos homens mijando nas calçadas, bem à vontade, então parece que a prática é comum. E vamos constatando algumas coisas desse país tão ímpar: público e privado não são coisas distintas, não há separação entre essas instâncias. A cada momento isso se confirma mais. 

A chegada à estação de Jaipur nos deixa com a cabeça atordoada. Quando levantamos para sair do trem, entra um batalhão de homens uniformizados para rapidamente retirar as malas de algum figurão político ou militar que viajava no nosso vagão. Eles quase nos derrubam, correndo para que o tal sujeito não ficasse um segundo a mais do que o necessário no meio do populacho. E logo chega a nossa vez de ser assediados: um enxame de taxistas e puxadores (isso mesmo, os “pullers“) de riquixás voam em cima de nós e oferecem passeios para todo lado, hotéis, lojas, restaurantes, isso e aquilo. Temos que apressar o passo e brigar muito com um deles para que nos leve até o hotel por um preço justo. Conseguimos, por fim. 

Então, fomos em quatro pessoas – mas isso não é nada para os padrões locais – num riquixá rumo aos muros da cidade antiga. O trajeto de riquixá já é uma atração – provavelmente arriscada. E quando passamos pela primeira porta, vem o furacão. Cena de filme, Indianna Jones, aqueles mercados lotados de gente, macacos para todo lado, vacas deitadas com placidez na rua, búfalos para lá e para cá, vendas de tudo quanto é coisa, homens conversando longamente, sentados nos colchões de suas lojas, sem preocupar-se com possíveis clientes, feiras de legumes e frutas com todas as cores e cheiros, mulheres desfilando com toda sorte de saris e panos e pinturas de henna, anéis, pulseiras e tornozeleiras que trazem pequenos guizos sinalizando sua presença. Templos hindus com músicas altíssimas, frenéticas, atraem devotos que deixam seus sapatos na entrada e entram levando oferendas como côco seco e colares de flores naturais para os deuses. Mulheres muçulmanas cobrem as cabeças e parte do rosto com suas  vestes negras, e pequenos detalhes em dourado, muito vivo. Viramos uma esquina, e encantadores de serpentes tocam sua espécie de flauta para que as najas saiam do cesto e eles ganhem mais alguns cobres dos turistas. 

as najas não estavam muito animadas

as najas não pareciam muito animadas

E, aqui e ali, palácios suntuosos, deslumbrantes, alguns bem preservados, outros bem menos. A herança dos marajás do Rajastão – ainda hoje a família do último deles é dona dos palacetes e fortes que abrigam os hotéis mais sofisticados da cidade. Elefantes e camelos maltratados são oferecidos aos turistas, para que façam um lúdico passeio até o forte de Âmbar, um lugar belo e impressionante (mas que na base tem um lago tomado pelo lixo). 

E, pensamos: isso tem muita “cara” de Índia, da ideia de Índia que criamos no nosso imaginário ocidental, pouco ambientado com esse mundo. Mas a Índia parece ser isso, também. E não há dúvida de que ela pode ser muitas coisas, muitas faces, muitos cheiros, muitos recantos. Muitas formas de tratar o ser humano e do ser humano poder existir. A sensação é, por fim, de um grande e insondável mistério.

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